A primeira das devastações de Nova Iorque, que teme ser extinta pelo governo Bolsonaro junto de outros municípios pequenos sem arrecadação própria relevante, aconteceu quando a localidade tinha outro nome e nem chegava a ser uma cidade maranhense.
Em 1839, a então fazenda Sussuapara sumiu das proximidades do porto das Almas depois que o dono da propriedade foi morto durante a Balaiada, revolta popular de camponeses pobres, indígenas e negros escravizados contra opressores políticos e econômicos.
Três décadas depois, uma pedra no meio do caminho do rio Parnaíba daria início à história oficial de Nova Iorque. Depois de desobstruir o tráfego fluvial a pedido do Império, o engenheiro americano Edward Burnet decidiu ficar por lá mesmo.
Construiu sua casa de telhas e fundou uma vila, que seria batizada em homenagem a sua terra natal em 1890, ano de emancipação da vizinha Pastos Bons.
Em 1925, Nova Iorque sofreria a primeira de suas três destruições: a Coluna Prestes incendiou os arquivos públicos (e assim os registros escritos), saqueou estabelecimentos comerciais, quebrou o telégrafo, invadiu casas e abateu bois. Apenas três famílias nova-iorquinas tiveram coragem de ficar em suas residências, segundo relata a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
No ano seguinte, nova ruína. Um temporal duradouro levou à tamanha inundação que a cidade inteira se mudou morro acima. A “Nova Nova Iorque” seria reconstruída pelos habitantes com suas 13 ruas, três praças e disposições das casas iguais, tudo para garantir que os vizinhos continuassem os mesmos.
Na década de 1960, a cidade seria inundada novamente, agora pelo lago artificial da hidrelétrica de Boa Esperança. A despedida foi marcada por missa, procissão e um hino que falava em “Serei teu vizinho/ Morrerei sozinho/ E não te vejo mais”.
O maior dos traumas, relatam moradores da época, foi deixar para trás familiares enterrados no cemitério local. Segundo os relatos, apenas o corpo da milagreira Mariquinha Fonfon foi exumado e transferido para o novo cemitério.
Casas submersas deram lugar a conjuntos habitacionais de fachadas semelhantes. “Tinha neguinho que não acertava nem com a casa. Ele chegava e entrava na minha, entrava na casa do outro, todo perdido sabe?”, conta um dos moradores no livro Nossa, Nova Nova Iorque, do historiador Helen Lopes. Desta vez, a distribuição aleatória dos moradores forçou uma ressocialização massiva entre novos vizinhos.
O temor mais recente de Nova Iorque surgiu na semana passada com o nome de PEC do Pacto Federativo, proposta de emenda à Constituição feita pelo governo Bolsonaro que inclui a extinção de todos os municípios com menos de 5.000 habitantes que tenham menos de 10% de receita própria.
“Fiquei estarrecida, indignada, triste. O maior problema que enfrentamos no Brasil, no Maranhão e em Nova Iorque é a distribuição de renda. O governo pretende reduzir repasses federais quando, na verdade, deveria aumentá-los. Nós precisamos de pessoas que nos ajudem, não de pessoas que nos tirem do mapa”, afirmou a prefeita Mayra Ribeiro Guimarães durante entrevista à BBC News Brasil, a prefeita é filiada ao mesmo partido do presidente Bolsonaro, PSL.
Com 4.590 habitantes, Nova Iorque é uma das mais cidades mais antigas dentre as 1.217 ameaçadas pela proposta. Segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), a cidade maranhense arrecada apenas 1,3% de sua receita corrente líquida total, parte graças ao turismo em torno da praia do Caju, na barragem que inundou a “Velha Nova Iorque”.
A proposta gerou reação indignada de prefeitos, mas foi defendida parcialmente por uma parcela dos estudiosos de emancipações municipais.
Para especialistas, uma eventual redução do número de municípios não deveria levar em conta apenas dois indicadores, um fiscal e outro demográfico, mas diversos outros, como oferta de serviços públicos à população e distância dos distritos à sede administrativa municipal.
Por que Bolsonaro quer acabar com pequenas cidades?
Caso seja aprovada pelo Congresso como foi proposta, a PEC do Pacto Federativo estabelece, entre outros pontos, que os municípios precisarão comprovar sua sustentabilidade financeira até 30 de junho de 2023, tendo em vista os dados do censo populacional que será realizado em 2020.
Nesse cenário, aqueles que não atingirem esse patamar serão incorporados a um município vizinho com arrecadação própria maior. Nova Iorque poderia voltar, por exemplo, a fazer parte de Pastos Bons a menos de 20 quilômetros de distância.
Segundo estimativa do Ministério da Economia, essa medida pode gerar uma economia anual de R$ 250 milhões a R$ 500 milhões, ao reduzir os repasses do Fundo de Participação dos Municípios (FPM), principal fonte de receita da maioria das cidades brasileiras.
“Um município que 90% de sua receita vem do Fundo de Participação dos Municípios, pelo amor de Deus. Não dá nem para pagar os vereadores. O que o município faz? A ideia não é perseguir ninguém, mas este município tem que voltar a ser distrito”, afirmou o presidente durante uma transmissão ao vivo em redes sociais.
Segundo levantamento do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, um vereador paulista custa em média R$ 294 mil por ano.
Como há um número mínimo de legisladores municipais, entre as cidades de SP com menos de 5 mil habitantes o custo de um vereador por habitante varia entre R$ 107, em Santópolis do Aguapeí, e R$ 868, em Borá. Na terra natal de Bolsonaro, Glicério, que também está ameaçada pela PEC, um legislador municipal custa R$ 174 per capita.
Segundo levantamento da Confederação das Associações Comerciais e Empresariais do Brasil em 2016, 707 municípios do país gastam mais com despesas legislativas do que conseguem arrecadar com tributos municipais, como o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e o Imposto sobre Serviços (ISS).
Esses custos, segundo defensores da redução do número de cidades, acabam competindo com a oferta de transporte público e a rede de educação básica, entre outras atribuições municipais.
Para a Confederação Nacional dos Municípios, a associação entre a capacidade de arrecadação própria e o tamanho do município é um “grande equívoco e uma falta de conhecimento acerca da realidade brasileira” e não leva em conta os princípios do Pacto Federativo da Constituição de 1988.
Segundo levantamento da entidade, 82% das cidades brasileiras arrecadam menos de 10% da receita própria, incluindo uma capital, Boa Vista (RR).
A reação inflamada de prefeitos e a proximidade das eleições municipais, em 2020, devem criar diversos obstáculos ao avanço da proposta no Congresso.
Por que houve um boom de municípios?
O boom de criação de municípios ocorreu depois da promulgação da Constituição de 1988, com um federalismo que garantiria às cidades autonomia político-administrativa equivalente à dos Estados, por exemplo, além de menos custo para a elevação de um distrito à categoria de município, regras mais flexíveis para a emancipação e incentivos fiscais indiretos.
O número de municípios passou de 4.124 em 1988 para 5.507 em 1997, alta de 35%.
Os requisitos para a criação de municípios variavam entre os Estados, a exemplo da proporção de eleitores em relação ao total de habitantes e do número mínimo de edificações na área urbana.
O processo em si passa por diversas fases, entre elas o pedido formal de emancipação em si, o referendo entre os habitantes e o aval do governo federal.
Em cada 10 municípios ameaçados de extinção pela PEC do Pacto Federativo, 3 foram implementados nos anos 1960 e 4, nos anos 1990.
Estado com mais municípios do país, Minas Gerais emancipou 237 cidades em 1962 com o objetivo principal de aumentar a participação mineira no bolo de tributos federais, de acordo com regras vigentes à época. Em 1935, eram 215. Hoje, são 853. Desse total, 211 municípios correm risco de acabar com a nova PEC.
Levantamento do Instituto Brasileiro de Administração Municipal com prefeitos de municípios criados nos anos 1980 e 1990 indica quatro principais motivos para as emancipações: concentração de recursos no distrito-sede, forte atividade econômica local, extensão territorial do município de origem e aumento da população local.
“As populações desses distritos se sentiam abandonadas em relação à sede do município, que concentrava recursos locais. E à medida que você se emancipa, consegue garantir um mínimo de recursos para a oferta de serviços públicos”, afirmou à BBC News Brasil o economista e geógrafo François E. J. de Bremaeker, gestor do Observatório de Informações Municipais.
Para ele, a extinção dos municípios poderia levar a um êxodo e a uma favelização nos distritos-sedes, além de atentar contra municípios que são pequenos por opção própria.
Outros pesquisadores acrescentam às razões por trás das emancipações os recursos do Fundo de Participação dos Municípios e arranjos políticos regionais.
Em razão da metodologia de distribuição dos recursos do fundo, criou-se uma distorção em que dois municípios de 6 mil habitantes recebem mais recursos per capita que um de 12 mil, por exemplo. E como o montante distribuído não varia, a fragmentação reduz os recursos destinados às outras cidades no Estado.
Na opinião de Bremaeker, o “bem necessário” dessa fragmentação é a criação de uma classe político-administrativa para gerir esses recursos, apesar da consequente formação de novas elites locais e dos novos custos com o Executivo e o Legislativo.
A economia local também tende a girar em torno da administração municipal, que oferece empregos e tem capacidade de investimento, mas essa estrutura não tem tanto peso fiscal em cidades desse porte como sugere o governo federal, segundo Bremaeker.
Em estudo recente, ele aponta que quanto maior o município, maior o estrangulamento do custeio sobre os investimentos.
O que é melhor para os cidadãos?
Nos últimos 20 anos, foram realizados diversos estudos acadêmicos sobre a emancipação dos municípios no Brasil, principalmente em torno da pergunta: a vida melhora ou piora com novos municípios? A maioria dentre os mais citados identificou efeitos negativos ou falta de positivos.
Estudo assinado por Enlinson Mattos e Vladimir Ponczek, da Fundação Getúlio Vargas, em 2013, aponta que “municípios menores, apesar de receberem mais recursos per capita de transferências governamentais, têm maior dificuldade em transformar tais recursos em bens públicos para suas populações”.
Na pesquisa, eles identificaram quedas em indicadores como coleta de lixo, índice de desenvolvimento humano (IDH) e taxa de escolaridade.
Outro estudo publicado também em 2013, desta vez pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), também refuta a hipótese de eventuais benefícios com a criação de municípios. “As emancipações municipais, por si só, não foram capazes de ensejar o desenvolvimento econômico dos municípios envolvidos”, conclui a pesquisa elaborada por quatro técnicos do órgão.
O trabalho defende mudanças nos critérios dos sistemas de transferências de recursos para os municípios, a fim de desestimular a criação de micromunicípios privilegiados por distorções nesses mecanismos.
Na contramão, um estudo de 2018 assinado por Ricardo Dahis, da Universidade Northwestern, e Christiane Szerman, da Universidade Princeton, aponta benefícios na política emancipatória.
A partir de uma metodologia diferente de comparação das novas localidades, a dupla de pesquisadores analisou a evolução de quatro categorias de indicadores socioeconômicos: educação, saúde, oferta de serviços públicos e renda.
“De modo geral, identificamos que a proliferação de unidades administrativas menores está associada a melhores níveis educacionais, menores taxas de mortalidade infantil, aumento da coleta de lixo e da rede de energia elétrica, menores taxas de pobreza e aumento da renda per capita”, afirmam no artigo.
Por BBC